quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

"São rosas, Senhor..."



Já aqui tive oportunidade de partilhar o meu fascínio por vestidos de princesas. Já aqui tive a oportunidade de partilhar o enorme prazer que tenho em ver a minha filha vestida de princesa. Já aqui tive oportunidade de partilhar a precipitada antecipação com que corri à loja da Disney para lhe comprar um vestido de Aurora (Bela Adormecida) para este Carnaval.

Ainda não tive oportunidade de partilhar que fui entretanto informada pelo Colégio de que este ano, excepcionalmente, o Carnaval vai ser temático. E qual é o tema, qual é? Portugal: trajes típicos, trajes regionais, figuras da nossa história e antigas profissões. Muito bem. Não há moral para criticar uma iniciativa que visa aproximar as nossas crianças da sua história, raízes e tradições. Mas também não há moral para comunicar à Té que não vai poder usar a sua linda fantasia de Bela Adormecida.

Cheguei à conclusão que, a bem da minha boa imagem como encarregada de educação e a bem da estabilidade da nossa relação mãe-filha, a única hipótese que me restava era unir o melhor de dois mundos, leia-se: juntar ao vestido, aos sapatinhos, à cabeleira e à coroa de Aurora um ramo de rosas e um saco de pão. Um remix Disney/História de Portugal com fortes probabilidades de dar para o torto...

Comecei por introduzir o assunto contando o ‘Milagre das rosas’ à Té que gostou particularmente do facto da rainha boa conseguir enganar o rei que era um bocadinho mau. Depois sugeri que este ano, excepcionalmente, ela se vestisse não só de princesa mas de princesa e rainha. Contrariamente às minhas expectativas o conceito foi assimilado de imediato sem qualquer questão. Sorriu e disse:

"Amanhã não te 'queças' de 'compar' as rosas!"

Como que lendo o meu espanto perante a sua reacção, abriu os bracitos e explicou:

"É como no 'fime' da Barbie Rapunzel em que a Barbie é a Rapunzel. Eu vou ser a Aurora Rainha Santa Isabel!"



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Kiev



Cá por casa, a ida para a cama dos mais novos obedece a um ritual que consiste geralmente em leitinho, luta de almofadas, grito e choro do primeiro a magoar-se, disputa acerca do episódio de desenhos animados a ver, grito e choro do vencido, vinte minutos de televisão, chegada da mãe malvada ao quarto, mudança súbita de canal, queixume do Ti, choro da Té, queda no sono e, finalmente, transporte a peso de cada um para a sua respectiva cama. Isto comigo. Com o pai é mais simples: leitinho seguido de tempo indeterminado para tudo o que quiserem ver e fazer até à chegada do ‘João Pestana’. Esta segunda técnica, apesar de muito menos ruidosa tem, a meu ver, a grande desvantagem de demorar umas boas duas horas.

Num recente serão a meu cargo, chegado o momento de desligar os desenhos animados, surgem no ecrã imagens da Praça da Independência em chamas. O Tiago fita a televisão incrédulo:

“O que é aquilo mãe?”

A Teresinha, pára de chorar, põe o dedo no ar e elucida-nos:

“É fogo. Não vêem?”

O Ti encolhe os ombros:

“Boa Teresa… mãe, diz lá o que se passa ali.”

Explico que é uma manifestação violenta numa cidade chamada Kiev, num país muuuuuito distante, a Ucrânia. Segue-se a pergunta obrigatória:

“Pode acontecer uma manifestação aqui em Portugal?”

“Pode mas não daquele tipo. As nossas manifestações são motivadas por outras causas e são quase sempre pacíficas, não te preocupes.”

“A manifestação de Kiev é uma guerra?”

Antes que eu responda a Té atalha:

“É fogo, Tiago!”

Continuo:

“Por enquanto ainda não mas as pessoas estão de cabeça perdida e o governo não quer ceder. Pode vir a originar uma guerra…”

“Uma Guerra Mundial?”

“Não.”

“Então, uma Guerra Nacional?”

“Não, uma Guerra Civil.”

“O que é uma Guerra Civil?”

A Té, indignada perante a nossa incapacidade de entender o óbvio, grita para que percebamos de uma vez por todas:   

“É FOGO! NÃO É GUERRA! É FOGO!”

Apago as chamas com o comando e dou-lhes um beijinho de boas noites. Fico a vê-los adormecer enquanto penso em quão afortunados somos por vivermos em paz e em liberdade. Bons sonhos, meus queridos. Hoje dormem comigo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

"Wrinkles should merely indicate where smiles have been" (Mark Twain)



Sábado. Hora de ir buscar o Tommy ao futebol. Estaciono e dirijo-me a alguns pais que conversam alegremente enquanto aguardam os seus pequenos campeões.

“Boa tarde, podem dizer-me se o jogo já acabou?”

Olham-me com o desprezo que merece uma mãe que não se dignou a assistir à partida. Sorrio e, numa tentativa de conquistar alguma compaixão, aponto para o Ti e para a Té, à tareia, no banco de trás do carro. Não se comovem. Está visto que duas criancinhas pequenas não desculpam a minha passividade perante a carreira do mais velho. Não me intimido. Tenho a consciência tranquila. Duas horas em casa com os mais novos exigem muito mais de mim do que duas horas a conviver com treinadores de bancada. Além disso, estive a fazer um pudim molotov que é dos preferidos do Tommy. Mais, este foi o primeiro jogo após a paragem de três semanas por lesão pelo que estou segura de que não saiu do banco. Limito-me a perguntar:

“Ganharam?”

Respondem-me (quase em coro):

“A pergunta não é ‘se ganharam’. A pergunta é ‘por quantos ganharam’…”

Ok, já percebi que ganharam. Vislumbro o meu menino ao longe. Vem de cabelo seco, sinal de que não jogou. Aceno-lhe e dirijo-me para o carro onde os outros dois continuam engalfinhados. Desejo um bom fim-de-semana aos pais sem lhes dar tempo de me comunicar o resultado.

Arrancamos em direcção a casa. O Tommy vai ao meu lado, sorridente e confiante. É impressionante como está crescido.

“Então? Não perguntas pelo jogo?”

“Já sei que arrecadaram mais uma vitória, meu querido. Fico contente. Também já reparei que estiveste no banco mas era de esperar que não jogasses hoje.”

Olha-me e, percebendo que não estou muito interessada em saber mais detalhes, muda de assunto:

“Mãe, o que é que tens aí na cara? Arranhaste-te?

Espreito o retrovisor. Não vejo arranhão nenhum.

“Acho que não… onde é que vês o arranhão?”

Aponta para o canto do meu olho direito:

“Aqui. Está arranhado. Oh! São rugas?!?”

Aceno positivamente enquanto ponho o retrovisor na posição original. Não estou interessada em ver as minhas rugas, muito menos em falar sobre elas. Mudo de assunto:

“Então e o jogo? Conta lá como foi.”

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Bolas...



Tudo começou com uma caneta da Kitty que tem um carimbo com a cara da Kitty no topo e se abre ao meio para fazer bolinhas de sabão. Um ‘três em um’ de sonho para a minha filha, um perigo iminente para qualquer sofá, tapete ou parede.
Considerações à parte, a Té passou a tarde de domingo entretida a carimbar Kitties e a fazer bolinhas de sabão e nós passámos a tarde de domingo a preguiçar em frente à lareira. Escusado será dizer que a certa altura foi necessário um ‘refill’ de líquido de bolinhas. Escusado será dizer que o detergente da louça se mostrou uma solução, no mínimo, ineficiente. Escusado será dizer que sobrou para mim arranjar mais líquido de bolinhas.

“Amanhã compro-te um líquido bom para bolinhas, ok?”

“Ok! Qué pink!”

“Sim, vou procurar um pink.”

Não me preocupei em averiguar se ‘pink’ era a cor pretendida para o líquido de bolinhas ou para o recipiente do líquido de bolinhas. Limitei-me a empurrar o assunto com a barriga na esperança de que ele se dissolvesse na chuva da manhã seguinte. Não aconteceu. À chegada ao colégio a Té deu-me um abraço apertado e lembrou:

“Mamã, não te 'queças' do pink…”

“Sim, vou tentar encontrar… pink… não me esqueço.”

Deixei a compra das bolinhas para o fim da tarde já que tinha de ir ao CorteInglês comprar umas lãs e umas agulhas circulares específicas nº10 para uma manualidade específica que decidi elaborar. O CorteInglês não é barato, os lugares de estacionamento foram desenhados para carrinhos de carrossel e os elevadores demoram eternidades mas a verdade é que há coisas que só se encontram lá. Despachadas as agulhas e as lãs faltava-me apenas atender ao pedido da Teresinha.

Quiosque do Corte Inglês.

“Desculpe, tem coisas para fazer bolinhas?” <Gostava de poder fazer esta pergunta de um modo menos obtuso mas não conheço nenhum outro nome para coisas-de-fazer-bolinhas>

“Não, minha senhora, talvez no Piso 3…”

Piso 3 do CorteInglês.

“Desculpe, menina, têm coisas para fazer bolinhas?”

“Não minha senhora, talvez no Quiosque…”

“No Quiosque não há. E só o líquido? Não vendem? <Pink, de preferência…>”

A empregada abana a cabeça e esforça um sorriso:

“Não, não temos nada disso…”

Volto para o carro enquanto digo a mim mesma que é um disparate estar a perder tempo com isto. A Té tem milhares de coisas com que se entreter. Pode fazer bolinhas de sabão noutro dia qualquer. Ligo ao André para o avisar de que vou a caminho de casa. Atende-me a Té:

“Mãe! 'Encontaste' o pink das 'bóinhas'?”

O meu 'eu' racional desvanece-se (como uma bola de sabão). 

“Vou encontrar querida, vou encontrar. Diz ao pai que ainda demoro.”

Paro em dois ou três quiosques.

“Desculpe, tem coisas para fazer bolinhas?”

“Não.” “Não.” “Já tivemos…”

Paro na bomba de gasolina.

“Desculpe, tem coisas para fazer bolinhas? Como não?”

Paro no Pingo Doce. Não há.

Já são quase horas de jantar. Começo a ficar enervada. Respiro fundo. Perdido por cem, perdido por mil, não hei-de chegar a casa sem a coisa de fazer bolinhas.

Paro no Continente. Não há.

Isto não me pode estar a acontecer. Ligo ao André e partilho o meu desespero. Ele não entende. Diz-me para esquecer o assunto e ir para casa. Não vou. 

Paro noutra bomba de gasolina.

“Desculpe, tem coisas para fazer bolinhas? Não diga nada, já sei que não.”

Última hipótese. Loja do Chinês: YE’s price tudo o que você precisa para si e sua casa.

É bom que assim seja. Neste momento preciso apenas de uma coisa-de-bolinhas-de-sabão. Pink.

Salva pelo Chinês. Há coisas para fazer bolinhas da Kitty, coisas para fazer bolinhas da Minnie e coisas para fazer bolinhas das Princesas. Há coisas para fazer bolinhas grandes e coisas para fazer bolinhas pequenas. Mais: descubro que também há agulhas de tricô. Circulares. Número dez. A um terço do preço. E há lã. Muita lã. De todas as cores. A que comprei no CorteInglês é de melhor qualidade. Resta-me acreditar que sim.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

monopoly



"Meninos, dêem um beijinho ao pai e à mãe que vão ao cinema!"

Olham-me incrédulos.

"Ao cinema?! A esta hora?!"

Percebo que lhes pareça estranho irmos ao cinema sozinhos ainda por cima à hora de deitar. Para eles 'cinema' é sinónimo de blockbuster Disney, pipocas e óculos 3D. Esclareço-os:

"É verdade. Os crescidos podem ir ao cinema à meia-noite. Por falar em meia-noite, já são mais que horas de estarem a dormir. Pijama, leitinho e... cama!"

"Mas... o avô disse que íamos jogar Monopólio!"

Olho-os incrédula.

"Monopólio?! A esta hora?!"

"É verdade. O pai deixou." 

Sorriem e apontam o tabuleiro, já aberto em cima da mesa, com 3 peças (para o avô, para o Tommy e para o Ti) posicionadas na 'Casa Partida'.

Abro os olhos ao André que, imune ao meu olhar ameaçador, ajuda a distribuir as notas enquanto recomenda ao Tommy que seja, dentro do possível, solidário com o irmão.

Batemos a porta quando os dados são lançados. Vai correr mal. O Tommy não sabe perder, o Ti não sabe jogar e a Té, apesar de não jogar, insiste em reordenar o território cada vez que apanha os outros distraídos. 

À chegada, contra as nossas expectativas, estão todos a dormir. Afinal parece que correu bem. O avô foi o primeiro a falir. O Tommy, dadas as recomendações do pai e o adiantado da hora, abraçou o Ti e gritou:

"Ganhámos!"

Ao que o Ti respondeu:

"Ouve cá, não é suposto ganhar só um?"

O Tommy explicou que era melhor assim e o Ti não teve como não concordar. Antes de adormecer disse ao avô:

"Avô, no monopólio, contra o Tomás, estás feito. Não tens hipótese. Comigo, não estás assim tão feito mas só porque ainda joguei poucas vezes. Amanhã jogamos de novo, ok?"

Está feito, avô. Está feito.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

wannabe



A Teresinha é uma caixinha de surpresas. Nunca sei o que esperar daquele metro de gente de nariz arrebitado. Talvez por isso não tenha achado estranho que há dias tenha decretado que "nada" era o que desejava fazer quando fosse grande.

O Tiago não gosta de surpresas nem de não saber o que esperar dos outros. Talvez por isso não tenha 'encaixado' o assunto sem descortinar o porquê de tamanha sostrice da irmã em relação ao seu futuro neste mundo. Insistiu, descortinou e cabe-me agora a mim, em jeito de desculpa por ter menosprezado o potencial da minha filha, transmitir a conversa dos dois:

"Ainda não percebi porque é que não queres ser nada."

"Poque sim. Não qué sê nada."

"Podes ser muitas coisas giras. Podes ser médica. Podes ser polícia. Podes ser empregada de  loja..."

"Nao qué sê nada, já disse."

"Mas porquê, Teresa? Porquê?"

"Poque eu góto de sê pequena! Eu não qué sê nada poque EU NÃO QUÉ SÊ GANDE!"

Tão simples como isto. Tens toda a razão, minha querida. Quem é que, no seu perfeito juízo, quer ser doutor quando pode ser criança?

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

monday morning icebreaker



Circunvalação. Segunda-feira. Sete e meia da manhã. 

Um manto denso de nuvens pinta de noite o dia que acabou de nascer. Pedrinhas de granizo salpicam o pára-brisas.

"Já viste como está frio lá fora, Ti?"

Viu mas não responde. Vai calado, no banco de trás, aparentemente alheio à minha conversa sobre o tempo. Podia perguntar-lhe "o gato comeu-te a língua?" mas não me parece a pergunta mais adequada a fazer a uma criança que está prestes a entrar num bloco operatório para ficar sem amígdalas e sem adenóides. 

O aperto que sinto no estômago aumenta a cada semáforo que vira verde. Digo para mim mesma que não tenho razão para me preocupar. É uma intervenção simples. Metade das pessoas que conheço já foi operada à garganta. Não há como correr mal. Haver há, mas a probabilidade é pequena. Muito pequena. Mas existe. Odeio probabilidades. Olho as pedrinhas de gelo no vidro. Tão frágeis, tão efémeras. Como nós, no Universo. 

Olho-o pelo retrovisor e esboço um sorriso. Quero sossegá-lo mas as palavras esfumam-se antes de sair. Ele sorri de volta e, como que lendo o pânico que me vai na alma, rompe o silêncio com um:

"Sabias que o pólo sul é três vezes mais frio do que o pólo norte?"

"Acho difícil que assim seja. Quem é que te disse essa?"

"Ninguém, mas é lógico."

"Explica lá a lógica, então."

"Mãe... os pinguins gostam de muito, muito, muito frio. O Pai Natal só gosta de muito frio."

Rio-me. Não está de todo mal pensado. Último semáforo antes do Hospital. Respiro fundo. Olho as pedrinhas de gelo no vidro. Penso nos pinguins. Penso no Pai Natal. Vai correr bem.