segunda-feira, 31 de março de 2014

“If you change the way you look at things, the things you look at change.” (Wayne Dyer)



Era uma zona industrial, tão incaracterística como todas as zonas industriais. Era noite. Armazéns despidos de cor dormiam embalados pelo ruído da estrada nacional. Um deles era um stand de automóveis. Através da fachada em vidro era possível vislumbrar meia dúzia de carros novos alinhados num gélido openspace. Um stand, como todos os outros, num armazém, igual a todos o outros. Não para o Tiago.

“Ei, viram aquilo ali?”

Nenhum de nós tinha reparado em algo que fosse digno de atenção.

“O quê Ti?”

“Aquilo, ali, que dizia Ford!”

“Ah, o stand. Que é que tinha?”

“Era como uma casa, mas suuuper gigante e como um prédio, mas muuuito menor. Com carros lá dentro. Não era espectacular?”

Não era, até ser visto da perspectiva certa:

“Era uma zona industrial, tão espectacular como todas as zonas industriais. Era noite. Casas super gigantes dormiam embaladas pelo ruído da estrada nacional. Uma delas, que parecia um prédio muito, muito pequenino tinha grandes janelas através das quais os carros que lá viviam viam passar os outros carros na estrada. Era um stand. Era espectacular.”

terça-feira, 25 de março de 2014

Talões, cartões e outras complicações...



Manhã de domingo, 23 de Março. Uma brisa gelada entra pela janela da cozinha para me deixar bem claro que a Primavera só chegou ao calendário. Enquanto preparo um café com leite bem quentinho penso no que tenho para fazer ao longo do dia: reunião de scrapbooking (onde já devia estar há meia hora), almoço, levar o Tommy a uma festa de aniversário (tarefa que posso chutar para o pai) e dar uma arrumação à casa. Pacífico. 

Dirijo-me à janela para a fechar quando, ao passar pelo quadro magnético, reparo nele. Pequenino. Quadradinho. Vermelhinho. A ondular ao sabor da brisa, no meio de um amontoado de recibos, facturas, notas e desenhos. Faço de conta que não o vejo. A minha consciência não é minha amiga e grita-me: «Último dia para o desconto de dez por cento em cartão!»

Bolas. Compras de mês numa tarde de domingo é tudo que eu não preciso. Vale-me o facto de o André estar em casa para ficar com os miúdos. Guardo o talão na carteira e saio porta fora. Quando regresso do scrapbooking, sem que tenha sequer oportunidade de mostrar o belíssimo lay-out que acabei de fazer, sou atingida com um:

“Joana, tenho de preparar uma apresentação. Preciso leves o Tommy à festa e vás ao supermercado… com a Té.”

Respiro fundo e procuro encontrar uma solução que não envolva Domingo, Continente e Teresinha em simultâneo. Não encontro. A Té sorri-me, bem disposta, enquanto tira do bolso dos jeans um papel que me estende.

“O que é isso Tété?”

“A minha lista. Do que eu peciso de compá.”

“Desde quando é que a menina escreve listas de compras?”

“Não esquevi. Disse ao Tiago e o Tiago esqueveu.”

Domingo, Continente e Teresinha munida de lista de compras… a combinação de sonho. Porém, dez por cento de desconto são dez por cento de desconto. Valem o esforço.

Lá fomos. Ao serão dei-me ao trabalho de analisar a factura e somar tudo o que comprei sob coação da minha filha. Contas feitas, concluí que gastei quase vinte por cento a mais do que se tivesse ido sozinha. Espero que a apresentação do pai tenha ficado óptima já que a paz de espírito de que usufruiu para a fazer custou para cima de quarenta euros.



sexta-feira, 14 de março de 2014

no flies allowed!



Queixo-me sistematicamente do teu mau feitio, da tua altivez, do modo como me ignoras. Queixo-me da tua ingratidão face ao tempo e carinho que te dediquei nos primórdios da tua existência. Queixo-me com fundamento. Deves-me a vida, sua malvada, e mesmo assim és incapaz de me conceder um mísero segundo de afecto. Destróis as minhas flores, rasgas as minhas roupas, roubas o bife do meu prato, mordes-me os pés se me atrevo a caminhar descalça na minha própria casa. Não és mais do que um bibelô trabalhoso. Sim, porque bonita, lá isso és, com as tuas listas douradas e os teus olhos transparentes. À parte os dotes decorativos tens, para mim, uma única utilidade: exterminar insectos. E com uma vantagem. Não deixas rasto. Hoje de manhã, como que a anunciar a primavera, entrou pela janela da cozinha a tua primeira vítima do ano.
Dois minutos, foi quanto bastou para que te apercebesses da sua presença, para que observasses friamente os seus movimentos de voo e a engolisses sem misericórdia. Muito bem, Glorinha. Que sejas o meu Dum Dum de serviço. Já dou o sacrifício por bem empregue.    

terça-feira, 11 de março de 2014

porque o prometido é devido...



Estamos em casa dos avós. O Tiago aparece na sala a correr, de comando na mão:

“Avó! Precisamos de comprar uma coisa na Wii online!”

Tudo que envolva conceitos potencialmente complicados como ‘online’, ‘wifi’, ‘hdmi’ ou ‘sincronização’ é invariavelmente chutado para o homem que estiver mais perto. A avó passa a bola com um:

“Fala com o avô.”

“Já falei. Há IMENSO tempo. Ele disse que tratava disso quando estivesse bom.”

(para quem não sabe, o avô tem vindo a recuperar - a um ritmo incrivelmente rápido - de um episódio que quase o levou deste mundo)

O Ti olha para o avô, que está, descansadinho no sofá, a ouvir (e a tentar decifrar) um confuso monólogo da Té sobre algo relacionado com a escola. Aproxima-se de mansinho e sussurra:

“Avôôô… precisamos de comprar uma coisa na Wii online… podes vir comigo? Disseste que compravas quando estivesses bom.”

O avô sorri, cruza a perna e, aparentemente imune ao sorriso cândido e suplicante do neto, afunda-se um bocadinho mais no sofá.

“Eu ainda não estou bom, bom, bom.”

O Ti solta um suspiro de indignação:

“O combinado NÃO foi quando estivesses BOM, BOM, BOM. Foi quando estivesses BOM. E tu já estás BOM.”

Contra factos não há argumentos. O meu pai está bom. E com 15€ a menos.


terça-feira, 4 de março de 2014

Falcão



O Falcão entrou nas nossas vidas algures no início de 2011. Chegou com olhinhos doces, orelhas baixas e as patinhas macias de cão bebé cheias de lama.

Manda a prudência que quando se vive numa casa onde há três crianças, um cão e uma gata com mau feitio não se abra a porta a um bichinho perdido. A prudência passou por mim a correr muito. O cão entrou na condição de ficar apenas um dia ou dois até conseguirmos encontrar o dono. Um ou dois dias em que a Glorinha (que o atacou assim que o viu) ficaria restringida à lavandaria e à varanda e o paz de alma do Beckam iria para casa dos avós. Um ou dois dias foram suficientes para o cão passar a ter nome (Falcão, que era a estrela da época do Fcp), cama, taças de água e comida, brinquedos, coleira e uma mega infecção na pata resultado de uma mordidela da Glória. Um ou dois dias foram suficientes para concluirmos que não íamos conseguir descobrir o paradeiro do dono. Um ou dois dias foram suficientes para cedermos aos pedidos dos miúdos e ficarmos com o Falcão. Um ou dois dias foram suficientes para embarcarmos naquelas que foram, sem grande dúvida, as semanas mais caóticas das nossas vidas.

O nosso ritual matinal (que já não era simples, diga-se) passou a incluir tarefas como passar o chão da cozinha e do corredor com a esfregona, dar antibiótico e fazer curativo à pata do bicho, resgatar bonecos sem mãos, sem pernas ou sem cabeça, procurar objectos desaparecidos (óculos, telefones, comandos), encontrar objectos desaparecidos feitos em pedaços, contabilizar pernas de mesas e cadeiras roídas. Ao ritmo de uma em cada três manhãs, a Glória (em formato ouriço com todos os pelos do seu corpo hirtos de fúria) arranjava forma de se esgueirar da lavandaria obrigando a um recolher obrigatório das crianças numa das divisões da casa até que a conseguíssemos separar do Falcão. Quando esta fuga ocorria antes da operação esfregona o cenário era digno de uma obra do Kusturica.

Passada a tempestade, o malvado do Falcão deitava-se de patas para o ar, ostentando a sua deliciosa barriga de cachorro, e sorria-nos com os seus olhos cor de mel mostrando que valia o sacrifício.

Certo dia, numa visita a casa dos avós, sumiu-se. Houve quem recomendasse "Aproveitem a oportunidade para voltarem a ter paz. Deixem-no ir à vida dele". Não o fizemos, naturalmente. Após dias de buscas e distribuição de cartazes fomos encontrá-lo bem disposto, com uma nova família, com a mesma coleira e um novo nome. Regressou, para grande alegria das crianças, e o caos regressou com ele. Até ao dia do incidente, que passo a descrever:

<O dia foi dos maus. Duas reuniões, das duras, na capital do império... não vejo hora de me enfiar na cama. Estou na cozinha, a aquecer os leites dos miúdos, que já estão de banho tomado e pijama vestido. O André ainda não veio da fábrica. A Teresinha, condutora eximia do seu andarilho, persegue os irmãos que perseguem o Falcão, que por sua vez persegue uma bola de ténis. Um grito eleva-se acima do abundante ruído ambiente e chega-me aos ouvidos:

"MÃÃÃÃÃÃÃEEEEEE! ESFREGONA! O FALCÃO FEZ XIXI!"

"Já vai, já vai! Segurem a Té antes que passe por cima!"

Estendo ao Tommy o caderno de Emprego do Expresso para ir cobrindo o 'lago'. Corro à lavandaria em busca do balde e da esfregona. Abro, com jeitinho, a porta, enquanto que, com o pé, tento evitar a passagem da Glória. Estou prestes a concluir com sucesso a minha operação quando ouço:

"Mãããeeeeee! O Falcão pisou o xixi e está a saltar para cima de mim!!!"

"TUDO QUIETO! VOU A CAMINHO!!!"

Regresso, de esfregona em punho. Sou ultrapassada por uma bola de pêlo amarela que tem tanta vontade de desfazer o Falcão como eu. Não há tempo, nem ânimo, para a apanhar. Deixo-a fazer o que lhe compete enquanto esfrego o chão e aviso os miúdos que têm de ir para o banho de novo. Eis que:

"Mããããeeeee! O Falcão fez cócó!!!"

Elevo a cabeça e vejo um cócó, enorme, em pirâmide, a fumegar mesmo à entrada da sala. Não... isto não me está a acontecer... olho em volta... o Tommy segura o Falcão que, de orelhas arebitadas, abana alegremente a cauda como se não tivesse nada a ver com isto... o Ti está encostado à parede, petrificado... a Glória parece ter percebido o nível de raiva que transpiro e está, inacreditavelmente, quieta no cimo de uma estante... instala-se o silêncio... a Teresa...onde está a Teresa?

"Meninos, a vossa irmã?"

"Acho que está na sala, mãe..."

O barulho do andarilho aproxima-se, anunciando que a Té não só está na sala como se dirige para nós... e para o excremento fumegante...

Tenho esta imagem viva na memória, hoje e para sempre: a Té a dobrar a esquina a alta velocidade com o seu rasgado sorriso de dois dentes... as rodas do andarilho a dispararem cócó em todas as direcções, a Glória estática no cimo da estante, qual gato de louça, com os olhos amarelos a brilhar perante aquela que era, claramente, a derradeira asneira do Falcão.>

Assim foi. No dia seguinte levei o bicho, a cama, as taças e os brinquedos a casa da família que o tinha acolhido aquando da sua fuga e que tinha mostrado abertura para ficar com ele. Tanto quanto sei foi feliz durante uns meses até ter fugido sem deixar rasto. Aposto que continua por aí a entrar e sair da vida de famílias como a nossa, com a missão de fazer ver que a vida que temos não é tão complicada quanto às vezes parece. 

Nos dias em que me sinto a perder a paciência lembro-me do 'momento Falcão' e digo para mim: "Já foi pior Joana, já foi pior."