terça-feira, 29 de abril de 2014

Há cromossomas Y a mais nesta casa...



“Então mãe, estás melhor?”

“Estou Tommy, obrigada. Fui ao médico e já comecei a tomar antibiótico.”

Olha-me de alto a baixo.

“Foste ao médico de saltos altos?”

“Algum problema com os sapatos?”

“Não me parecem muito adequados. Podias ter levado algo mais confortável. O mesmo se aplica ao rímel… é preciso pintar os olhos para ir ao médico?”

“Meu querido, fui ao médico, não chamei o INEM.”

“Mesmo assim…”

“Por essa ordem de ideias, saía de casa todos os dias com um carrapito na cabeça, de sapatilhas e de fato de treino.”

“Em dias normais, não vejo porque não. Mas, não me entendas mal, tu lá sabes.”

Sorri-me com aquele sorriso lindo dele e afasta-se airosamente antes que eu tenha oportunidade de exteriorizar a minha indignação. Aposto três pares de sapatos em como vai a pensar:  «ser mulher é mesmo muito mau...»

Cresce rápido, Tété. Estou a precisar de apoio

sábado, 26 de abril de 2014

Cheetos



Estaciono o carro em cima do passeio, em frente à padaria.

"Meninos, vou buscar pão."

"Mamã, posso i contigo pa escolhê coisas pa mim?"

"Não. Está frio e chuva. Ficas aqui com o Ti. São só dois minutos."

Antes que feche a porta o Ti pede bolas verdes. Bolas verdes? Que diabo são bolas verdes? Assim que atravesso a porta do estabelecimento deparo-me com um expositor da Matutano. Em destaque estão os Cheetos futebolas. O horrível sabor de sempre, agora em bolas, num pacote verde. Está explicado. É isto que o rapaz quer. Adora Cheetos. Não entendo como é que alguém tão avesso a junk food gosta de Cheetos. Ok. Dois pacotes, um para cada um. Não estou com disposição para discussões. Regresso ao carro e aviso que as bolas verdes são para comer em casa, com moderação. Moderação é uma palavra que não existe no (parco) dicionário da Té. Estendo-lhe alguns Cheetos, fecho o pacote e coloco-o longe da vista. O Ti tira um par de bolinhas fedorentas do seu e avisa:

"Dois por dia mãe. É o meu máximo."

Gosta de parecer hiper-mega-responsável mas nem sempre o consegue. Marshmallows e Cheetos são a sua Kryptonite. Passados alguns minutos está de regresso à cozinha. Olha-me de lado enquanto abre a mola com que fechou cuidadosamente o seu pacote.

"Então Ti? Não eram dois por dia?"

"Três. Três por dia."

Faço de conta que não vejo a sua terceira, quarta e quinta investida. À sexta não deixo passar. Aproximo-me e toco-lhe o ombro.

"Afinal de contas qual é o teu máximo, senhor Tiago?"

"Não sei quantas bolas tem o pacote, mãe. Digo-te amanhã, ok?"


terça-feira, 22 de abril de 2014

sopro azul para desanuviar uma semana vermelha


"Oh, meu Porto, onde a eterna mocidade

  Diz à gente o que é ser nobre e leal.
  Teu pendão leva o escudo da cidade
  Que na história deu o nome a Portugal.

Oh, campeão, o teu passado
  É um livro de honra de vitórias sem igual
  O teu brasão abençoado
  Tem no teu Porto mais um arco triunfal
  Porto, Porto, Porto, Porto
  Porto, Porto, Porto, Porto
  Porto, Porto

Quando alguém se atrever a sufocar
  O grito audaz da tua ardente voz
  Oh, Oh, Porto, então verás vibrar
  A multidão num grito só de todos nós"


Após o fatídico terceiro golo do Benfica, que nos sacudiu a última réstia de esperança de ganhar ao menos a Taça, o Tommy, de olhos rasos de água, perguntou-me:

“O que é que vamos ganhar este ano, mãe? O quê?”

“Nada, meu filho. Não vamos ganhar nada.”

Olhou-me com a mais profunda das tristezas, tirou a camisola que veste sempre para dar sorte durante o jogo, e saiu da sala com um:

“Não aguento mais isto. Vou dormir.”

É um pesadelo. Eu própria, que ainda sou do tempo em que o campeonato era uma coisa que se festejava ano sim, ano não, tenho alguma dificuldade em lembrar-me de tamanho desastre. O meu filho não está preparado para este pesadelo. Desde que é gente (e só é gente há onze anitos e uns meses) o Fcp já limpou nove campeonatos, cinco taças, oito super-taças, duas taças UEFA e uma Champions League. Face a este palmarés é complicado digerir os tristes resultados da época que agora termina. É complicado mas digere-se. O futebol é mesmo assim. Por mais que as coisas corram mal, por mais que insultemos o treinador ou tenhamos vontade de esbofetear metade do plantel, o amor ao clube não diminui. Este ano o Porto não foi o nosso Porto mas cá estaremos para continuar a apoiá-lo. Hoje de manhã, à chegada ao colégio, o rapaz foi prontamente saudado com um sarcástico:

“Então? Essa Páscoa? Não há palavras pois não?...”

Fiz-lhe uma festa na cabeça e disse-lhe baixinho:

“Não ligues.”

“Eu já argumento, não te preocupes.”

“Não tens grandes argumentos…”

Ele sorriu-me confiante:

“Contra um benfiquista?... Tenho sempre argumento!”

E lá foi, a correr no encalço dos amigos, com a força da chama azul e branca que até pode esmorecer mas nunca se apaga. Somos Porto.



Ps: quem me conhece sabe o quanto eu gosto de fazer quadros de Excel. Os títulos dos últimos vinte anos dos chamados ‘grandes’ (ao qual espero não ter de acrescentar mais nenhum quadradinho vermelho):


O Tommy tem razão. Não lhe faltam argumentos.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

"Levas-me ao colo?"



Sábado, três da tarde. Regressamos a casa após mais uma ida da Té à natação. Desta vez correu bem. Não chorou quando a abandonámos na piscina e, durante a aula, portou-se (palavras suas) “como uma menina de quato anos tem de se potá na natação”. Dormem profundamente, os três. O termómetro do carro mostra que deixámos (final e definitivamente) o inverno para trás. A minha tosse, espirros e falta de ar também o comprovam. Não há dúvida: a Primavera chegou. Tivesse a Clarissa rinite alérgica e a obra do Erico Veríssimo era bem menos encantadora.

Enquanto estaciono vou dando toques nos joelhos dos rapazes.

“Meninos… chegámos.”

O Ti acorda e abana o Tommy que continua enroscado no banco como um gato preguiçoso.

Abro a mala e a porta de trás.

“Vamos lá, mexam-se e tragam as tralhas. Eu tenho de carregar a princesa adormecida.”

O Tommy entreabre um olho e, num tom provocador, pergunta ao irmão:

“Levas-me ao colo?...”

“Não, sabes porquê?"

«Porque é uma impossibilidade estabelecida pelo simples facto de ter metade da tua idade» penso. Mas ele nunca diz o que eu penso que ele vai dizer. Abana a cabeça e suspira:

“Porque ia ficar exausto.”

sábado, 12 de abril de 2014

Anna



Hora de dormir. Estão no nosso quarto, a ver o Frozen, mais uma vez.

"Meninos, vamos lá desligar a televisão."

"Só mais cinco minutos, mãe. Está quase a acabar."

A Té, tentando enganar o sono que teima em aparecer,  arregala os seus olhitos gigantes e exclama:

"Eu quia sê a Anna!..."

Pego-lhe ao colo e deixo-me ficar a ver a cena final. Percebo-a. A Anna é destemida, bonita e divertida. Um encanto de princesa num encanto de filme.

O Ti encolhe os ombros e resmunga:

"Não querias nada ser a Anna."

"Quia, quia."

"Não querias, sabes porquê?"

Conheço aquela expressão de estou-aqui-para-te-mostrar-as-verdades-que-têm-de-ser-encaradas. Respiro fundo e preparo-me para o que vai sair dali. Ele dá  meia volta na cama e, antes de afundar a cabeça na almofada, explica calma e impiedosamente:


"Teresa, se tu fosses a Anna ias ter uma série de proglemas na tua vida. Ias cair de um cavalo. Ias ter uma irmã muito complicada. Ias ficar sem pai e sem mãe. Ias ter de escalar uma montanha gelada sem fato de neve. Pensa bem. Tu não querias ser a Anna. Boa noite."

quarta-feira, 9 de abril de 2014

"Why should things be easy to understand?" (Thomas Pynchon)



Férias de Páscoa. Almoço no Shopping. O Tommy aguarda ansiosamente a hora da sessão de cinema a que vai assistir com os amigos (e as amigas…). A Té pensa no que ‘pecisa de compá’ assim que acabar o hamburguer. O Ti tem o olhar parado, no vazio, há longos minutos.

“Em que pensas tanto, rapaz?”

“O Espaço é infinito não é?”

“É…”

“Como é que acaba?!”

Não há resposta para esta questão. Ele sabe disso. Suspira e, entre duas enormes garfadas de arroz thai, murmura resignado:

“É difícil entender o Espaço…”


terça-feira, 8 de abril de 2014

Frozen


A Té não disse nada até aos três anos, momento em que começou a desenvolver um teresês que está agora, que completou quatro lindas primaveras, cada vez mais próximo do português.
Talvez por estar a recuperar as palavras perdidas a minha filha não se cala, debitando a todo e cada segundo o que lhe vai na alma. Há, no entanto, alguns sons que ainda teimam em não sair, como é o caso da combinação das consoantes ‘f’ e ‘r’: diz “Fancisco”, “tenho fio”, “não qué futa” and so on. O ‘n’ e o ‘m’ no final das palavras também não soam na perfeição. Nada de grave até ao momento em que o filme de eleição passou a ser o Frozen. Fro-zen. A rapariga não diz o ‘fro’ nem diz o ‘en’. Resultado: cada vez que tenta dizer Frozen sai algo que eu me coíbo de escrever por ser demasiado mau. Dou-vos uma pista: começa por ‘f’ e termina em ‘tracinho se’.

“Mãe!! Qué vê o f.....se!”

“Queres ver o quê Té?”

“O f…..se!”

“Não digas isso!”

“F…..se?”

“Frozen, Té. F-r-o-z-e-n! Tenta lá!”

“F-…-…-…-…-se?...”

“Vamos chamar-lhe o Reino do Gelo ok?”

“Mas não é Reino do Xelo, mamã, é F…..se!”

sexta-feira, 4 de abril de 2014

"Vai acabar mal..."



Observar os meus filhos numa brincadeira pegada provoca-me dois sentimentos absolutamente distintos. Se por um lado me enche de alegria ouvir as suas gargalhadas (há coisa melhor do que o genuíno e incontrolável riso de uma criança?) por outro sou invariavelmente invadida por um péssimo pressentimento relativamente a quão mal a coisa vai acabar. Porque acaba sempre mal, não há outro modo de acontecer. A saber:

Acaba (mal) a brincadeira porque a chata da mãe decide que é hora do banho, de ir para mesa ou de ir dormir.

Acaba (mal) a brincadeira porque alguém se magoa no meio da algazarra.

Acaba (mal) a brincadeira porque começam a discutir e se pegam à pancada.

Estes três inibidores de brincadeiras pegadas acontecem em simultâneo com mais frequência do que o desejável. Foi o caso de ontem em que eu chamei os mais novos para o banho quando faziam a centésima última ronda de uma dança de cadeiras. O Tommy pára a música, o Ti e a Té lançam-se para a cadeira livre e acabam os dois no chão. A Té chora e diz que o Ti a pisou. O Ti grita-lhe que a culpa foi da cadeira que se mexeu. A Té bate no Ti. O Ti bate na Té. O Tommy sai de mansinho antes que sobre para ele. Arrasto-os para a casa de banho onde ficam a discutir:

“Não sô mai tua amiga. Não binco mai contigo.”

“Eu é que não sou mais teu amigo. Nunca mais falo contigo.”

“EU é que não falo mai contigo.”

“MÃÃÃEEE, a Teresa está a inritar-me!!!”

“O TIAGO É QUE TÁ!!!”

Encho a banheira enquanto tento convencê-los de que para não falarem mais um com o outro precisam de começar por de se calar. Quando entram na água já estão em paz.

“Mãããeee, podemos ficar aqui a brincar um bocadinho?”

“Só mesmo um bocadinho, caso contrário… vai acabar mal.”