domingo, 22 de junho de 2014

A Té e os cromos



“Mamã, podemos ir compá cómos?”

“Sim, depois de colarem esse monte que está aí ao lado da caderneta.”

“Mamã, ajudas-me a colá os cómos?”

Sento-me a seu lado no banquinho ‘pink’ e pego nos cromos que ordeno por seleções. Estendo-lhe um tal de Eren Derdiyok.

“Quem é ête mamã?”

“É o Eren, da Suíça.”

“De que equipa é o Eren, mamã?”

“Da Suíça, já te disse.”

Olha-me indignada.

“Não é das equipas das bandeias que estou a peguntá. De que equipa é sem sê das bandeias?”

Espreito as letrinhas pequenas no cromo e esclareço-a. Leverkusen. Venha o próximo. Atsuto Uchida, Japão. Também joga na Alemanha, no Schalke04.

“Ête é chinês, mamã?”

“Não, é Japonês. Olha a bandeira do Japão na camisola.”

“Mas tem cara de chinês!”

“Tem cara de japonês.”

“Os japonês têm cara de chinês?”

Tento explicar-lhe (sem grande sucesso…) as diferenças entre chineses e japoneses enquanto cola com perícia o Atsuto, o Yasuhito e o Hiroshi. Passamos ao Uruguay.

“Quem é ête que tá tão tiste mamã?”

Luis Suárez. Liverpool. Tem razão, a rapariga. O Suárez ficou mesmo tristonho na foto. Como diria o JJ até parece que “tá a chorare”. Rio-me sozinha enquanto lhe passo o Maxi Pereira.

“Que equipa é o Maxi, mamã?”

“Benfica.”

“É muito feio, o Maxi.”

Cola o Maxi, tão enviesado, tão enviesado que quase ocupa o espaço do Cáceres.

“Colaste mal, Tété… ficou torto.”

Sorri-me, confiante.

“Pois colei, mamã. Mas foi de propósito. É do Benfica. TEM de ficá mal colado.” 

"Tenho de contar essa ao pai. Algo me diz que vai ficar orgulhoso."

quarta-feira, 18 de junho de 2014

no milk today



O final do dia chega sem uma brisa que me refresque o corpo e (principalmente) a alma. Olho o asfalto que parece fumegar sob os carros parados à minha frente e anseio pelo momento em que possa enfiar-me debaixo do chuveiro. Toca o telemóvel.

“Joana! Não há leite!...”

Por estas bandas não haver leite é quase tão mau como não haver água ou luz. À excepção do pai, que só gosta de iogurte, ninguém vive sem leite de manhã, à tarde e à noite. Em doses industriais. Simples, com chocolate, com café, com cereais, batido com banana ou com morangos. Quente, frio, morno. Esteja gente em casa e há sempre um leitinho a sair.

Respiro fundo e digo o que tem de ser dito:

“Ok, eu passo no Continente (assim que o trânsito me permita…)”

Carrego no botãozinho que aumenta a velocidade do ar-condicionado até o símbolo da ventoinha estar completamente preenchido. Mesmo em modo túnel de vento continuo a morrer de calor. Um olhar mais atento ao painel de controlo permite-me constatar só está ligada a ventilação. Insulto-me e carrego no botão que diz A/C. Uma frente polar invade o carro. Deixo-me arrefecer até chegar ao supermercado, momento em que já me começa a doer a garganta. Dou duas ou três voltas em busca de um lugar à sombra. Não há. Estaciono bem longe da entrada, ao sol.

Vá que hoje em dia ir comprar leite para o meu povo já só exige esforço físico. Tempos houve em que era uma tarefa com requisitos para os quais poucos estavam habilitados. Ele era leite crescimento 1 a 3 com sabor a bolacha para a Té (servido morno e misturado em partes iguais com leite crescimento sem sabor), leite crescimento 3+ com sabor a cereais para o Ti (servido quase frio e misturado numa proporção de um para três com leite normal), leite meio-gordo para o Tommy (com Cola Cao ou Ovomaltine), leite magro para mim, leite gordo para sobremesas e molhos. Toda uma panóplia de tetra paks que a Glória fazia questão de furar cada vez que nos esquecíamos da porta da despensa aberta. Tempos em que organizar o frigorífico era quase tão difícil como organizar a mala do carro para uma semana de férias. Livrei-me desta esquizofrenia láctea no momento em que decidi passar a comprar um único tipo de leite. Foi bem mais simples do que esperava. Os mais novos fizeram um desmame gradual dos leites açucarados e em menos de uma semana estavam a beber leitinho simples sem queixas. Eu deixei-me de leite magro. Quanto aos cremes, bolos e molhos, passaram a ser feitos com leite meio gordo sem diferença de maior no resultado. 

Pego num carrinho, atesto-o de pacotes de litro e meio, pago e regresso. Atravesso o tórrido parque de estacionamento quando telemóvel volta a tocar. Detenho-me e procuro-o nos confins da minha carteira. Não aparece. Procuro melhor. Encontro-o. Já parou de tocar. Olho para a frente e vejo o meu carrinho com uma tonelada de leite meio-gordo a descer em aceleração o parque  que tem, definitivamente, uma inclinação muito superior à recomendada. Corro atrás. Agarro-o quando está prestes a desfazer a traseira de um carro estacionado. Suspiro. Estou na ponta oposta do parque. Arrasto (com esforço) o carrinho até ao meu lugar ao sol. Ainda me tenta fugir enquanto o descarrego mas já não me apanha de surpresa. Encho a mala. Agora é só chegar a casa e meter a carga no elevador. O papá e os meninos que a levem para dentro. Eu vou para o chuveiro.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Festas e Romarias - só para alguns.


Romaria Sta Rita
Ermesinde
6 a 10

A iluminação está montada bem no centro da rotunda. O sol da tarde torna-a praticamente invisível. Não para o Ti, que a tenta decifrar enquanto eu aguardo alguma alma simpática que me dê passagem e me permita deixar o Tommy a horas no treino.

“Ro-ma-ri-a-qualquer-coisa-Rita…o que é uma romaria, mãe?”

“É uma festa. Vão começar as festas da Santa Rita.”

“No castelo?” – pergunta a Té.

“Castelo?! Oh, Teresa, não percebes nada… ali foi onde os pais de casaram…”

“Casáte num castelo, mamã?”

Observo a igreja da Santa Rita e o grande edifício centenário do colégio da Formiga que se desenvolve a norte. Aos olhos de uma criança parece, efectivamente, um castelo de princesas. Não estivesse o Ti no carro e eu até era menina para alimentar a fantasia. Limito-me a confirmar que se trata de uma igreja e não de um castelo. Entramos, finalmente, na rotunda. A Té olha desconsolada o castelo que afinal não é um castelo. O Tommy olha o relógio que já marca uns minutos de atraso. O Ti continua a olhar para a iluminação não iluminada e exclama alegremente:

“E eu tenho sorte!”

"Tens sorte porquê, rapaz?"

Inclina a cabecita e sorri:

“Tenho sorte porque sou o único que pode ir. Seis a dez. Eu tenho seis, posso. A Teresa tem quatro, ainda não pode. O Tomás tem onze, já não pode!”

Podia tê-lo deixado a pensar que o seis a dez se referia a anos de vida e não a dias do mês corrente. Podia, mas não o fiz. E sou capaz de jurar que suspirou de alívio quando percebeu que não ia ter a oportunidade de ir sozinho à Romaria. 


terça-feira, 10 de junho de 2014

"I intend to live forever, or die trying" (G. Marx)



Não lido bem com a morte. Ninguém lida, acho. De todas as 'conversas difíceis' a da morte é, sem margem para dúvidas, a que mais me incomoda. Não há como brincar com a morte, não há como fingir que a morte não se vai atravessar no nosso caminho. Podemos dizer aos nossos filhos que o avião não vai cair, que não vai haver um tsunami, que a trovoada não vai acertar na nossa casa. Não podemos dizer que não vamos morrer.

Começo sempre por apresentar a morte como algo que só acontece num horizonte temporal demasiado longínquo para nos preocuparmos muito com ela. É menos complicado abordar a inevitabilidade da morte enquanto os miúdos estão convencidos de que esta só surge quando somos muito, muito, muito velhinhos. A Té ainda está nessa fase.

"Mãe, sabias que o Xoão do quado morreu?"

"De que João estás a falar, minha querida?"

"Do Xoão ca minha pofessora ensinou. Ficou veínho e morreu, cóitadinho..."

"E está num quadro?"

"Não mamã! O Xoão do quado! O Xoão Miró! O quado que pintámos na sala!"

"Ahh, já percebi. Joan Miró. Foi um grande pintor espanhol."

"Sim, a minha pofessora disse. E disse que morreu. Cóitadinho."

"Não é coitadinho, Teté. O Miró viveu cem anos! E fez muitas coisas maravilhosas ao longo da sua vida. Como o quadro que pintaram na escola, por exemplo."

"Mas morreu..."

"Pois morreu, tinha de morrer um dia."

"Tu vais sê veínha, mamã?"

"Sim, se Deus quiser, vou ser velhinha."

Lança-me um olhar gozão. Está certamente a imaginar as marcas que o tempo há-de deixar em mim e, pelos vistos, acha graça à minha versão bisavó. Passados uns instantes fica séria. Afasta a franja dos olhos e pergunta a medo:

"E vais morrer?"

É nestes momentos que eu anseio por uma campainha que me salve. Nunca toca. Respiro fundo.

"Sim, meu amor. Um dia, daqui a muito, muito tempo, quando tu também já fores um bocadinho velhinha, eu hei-de ir para o Céu."

"Vais a voar?"

"Não sei, logo vejo."

Sinto que a tensão está a desanuviar mas antes que consiga mudar de assunto ela volta à carga:

"E eu? Vou morrer?"

Era exactamente aqui que eu queria evitar ter chegado. Recuso-me a dizê-lo. Mais, recuso-me a pensar no assunto. Saio-me com um: 

"Quando fores muito velhinha, como o Miró, já deve haver medicamentos que permitam às pessoas viver para sempre." 

Os seus olhinhos iluminam-se e um sorriso rasgado abre-se na sua carinha linda. 

"Vai ser em xarópe? Eu góto de xarópe!"




quinta-feira, 5 de junho de 2014

Parabéns ao pai!



07:30 am.

As persianas (sempre) abertas dão passagem a tímidos raios de sol que inundam os quartos de luz. A luz não os incomoda. Dormem profundamente quais gatinhos enroscados no ninho. Detenho-me à porta, a observá-los, por uns momentos. Imagem mais apaziguadora do que a de um filho a dormir, só a imagem de três filhos a dormir. Lindos, serenos, a emanar vida por cada poro da sua pele macia. A tez dourada e os cabelos mais claros denunciam as muitas corridas e brincadeiras ao sol neste final de primavera. Era capaz de ficar assim toda a manhã. Não posso. Prometi ao Ti que hoje, ao contrário do costume, chegaríamos a horas.

“Meninos, bom dia! Vamos levantar?”

A Teresa dá meia volta na cama e tapa a cabeça com o lençol.

“Té… acorda lá, fofinha. Hoje é o aniversário do papá.”

Papá, a palavra mágica. Atira o edredon para trás e sorri.

“Onde vai sê a féta do papá? Cá em casa?”

Não vai haver festa, propriamente dita, pois vamos estar só os cinco mas para os meus filhos aniversário é sinónimo de festa. Não admitem que alguém ouse somar um ano sem soprar velas ao som de um “parabéns a você”.

“Sim meu amor, cá em casa.”

“Com bolo e balões!” informa o Ti enquanto se debate com os botões da camisa do uniforme.

Correcção à minha afirmação anterior: para os meus filhos aniversário só é aniversário se tiver bolo, velas, “parabéns a você” e… balões.

Assim será. Bolo, velas e balões. O mínimo que o papá merece neste cinco de Junho em que completa trinta e seis anos. Não há muitos super pais de famílias numerosas com menos de quarenta. O André não só o é como consegue fazer a tarefa parecer incrivelmente fácil. Os meus filhos têm uma sorte imensa e eu também.

Feliz aniversário e muitos, muitos, muitos anos de vida! 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Um pequeno gesto vosso, um gigantesco momento para a minha humanidade.




É apenas uma pequenina sessão de autógrafos, num pequenino stand de uma pequenina editora. Uma pequenina sessão com uma pequenina autora de uma pequenina obra. Mas a feira é grande, tem grandes pavilhões e grandes editoras com grandes sessões de grandes autores que fazem valer o esforço de abdicarem de um bocadinho da vossa tarde para irem lá cumprimentar a pequenina autora ao pequenino stand da pequenina editora e, quiçá fazerem-na sentir-se menos pequenina por uns breves instantes. É já no domingo. Às cinco e meia. Pavilhão D42. Não faltem.