domingo, 28 de setembro de 2014

Atchim!



Ele entrou no quarto, com a sua cara fechada e os olhos meigos escondidos sob as fartas sobrancelhas. Sentou-se na borda da cama e afagou a dobra do lençol branco. Lançou um olhar zangado ao termómetro, às gotas e aos xaropes dispostos em cima da mesinha de cabeceira.

“Outra vez doente?”

“Sim, avô. Mas não te preocupes, é só (mais) uma amigdalite. Daqui a uns dias volto para a escola.”

Não fossem as palavras que se seguiram e este episódio não se teria mantido vivo até hoje na minha memória, tantas eram as vezes que eu estava de cama e recebia a sua visita. Chegava sem pressa, com o jornal debaixo do braço. Fazíamos juntos as palavras cruzadas. Nessa manhã, pegou-me na mão e, com a candura e a honestidade que só ele tinha, constatou:

“Tu não prestas rapariga, tu não prestas…”

O meu avô Delfim tinha razão. Tivesse nascido no seu tempo e não tinha chegado à idade adulta. O meu avô não viveu para me ver casar com o homem da minha vida, também ele pouco resistente a gripes e constipações. Não viveu para conhecer três lindos bisnetos que não escaparam à carga genética e são infalivelmente vencidos pela primeira aragem fria de outono. Que pena tenho, avô, de não te ter por cá para te ouvir dizer-lhes com ternura "vocês não prestam rapazes, vocês não prestam."

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Sing a song



Eu tenho um problema com músicas para crianças. Se, na qualidade de jovem mãe, tivesse sido submetida a uma avaliação formal de desempenho eu teria falhado redonda e repetidamente a matéria “cante para o seu bebé". Por mais que tente, com um bebé no colo, o melhor que consigo fazer é trautear a clássica “abc song”. Qualquer outra canção infantil afoga-se-me na garganta antes de sair. As tradicionais deprimem-me. Não que eu tenha tido uma infância infeliz, longe disso, mas há nas canções do meu tempo uma  clara transversalidade de infortúnio: é um barco que se vira, um balão que foge, uma bola que se perde, uma machadinha que é injustamente atirada para o meio da rua, molhos de plantas que provocam irritações oculares, um malvado dum barqueiro que não dá passagem a uma mãe com filhos pequeninos para criar… enfim, um sem número de tristezas que me dão, ao menos, uma justificação moral para me escusar de as cantar. Quanto às musiquinhas actuais… bom, para essas não tenho, efectivamente, grande desculpa. Irritam-me, porque sim. E eu culpo-me por, mesmo conseguindo ver que são pedagógicas, alegres e construtivas, continuar a achá-las terrivelmente enervantes. Os meus filhos não têm culpa que eu sofra de falta de paciência crónica por isso tenho vindo, ao longo dos anos, a delegar no youtube e no leitor de cds do carro a função “cantar músicas infantis”.

Há tempos, numa ida à Feira do Livro, a Té quis comprar o livro/cd “As canções do Alfa”.

"Tu gostas do Alfa, Té?"
"Sim, góto muito do Alfa e da Zuna! E os meus amigos tamém!"

Espreito as primeiras páginas. O Alfa desceu na escola no seu disco voador, amarelo como o sol, a brilhar cheio de cor. Ele salta a fazer contas, e lê a fazer o pino. Deve ter comido livros quando era pequenino. A Té mostra-me a última, onde está a dita Zuna. A Zuna nasceu bem longe, num planeta extravagante, e passeia de girafa com cabeça de elefante. Parece engraçado. Dou uma rápida vista de olhos ao livroUma canção para cada letra e para cada número. Boa. Toma Tété, o teu livro do Alfa. Ouvimos o cd quando chegarmos ao carro.

Nesse dia ouvimos cinco vezes o hino do Alfa, vinte vezes a música da Zuna e chegámos ao destino sem ter entrado nas canções didácticas. Na manhã seguinte o livro seguiu para o colégio e não mais o vimos. O desaparecimento das canções do Alfa foi lamentado durante todo o verão até o avô o ter descoberto esta semana no porta luvas do carro.

"Teresinha!!! O Alfa apareceu!! Vais poder finalmente ouvir o cd todo!"

Na maior das boas vontades ponho o cd a tocar. Os miúdos escolhem letras e eu vou procurando as músicas respectivas.

"Letra B!"
 O balão da Beatriz... às nuvens foi parar. 

Uma criança está feliz com o seu balão até que o inevitável acontece e... onde é que eu já ouvi esta história?... ressalve-se a inovação de, nas músicas do Alfa, termos um elemento que resgata (potencialmente) o balão... é um pássaro? é um avião? o super-homem? nada disso:

Ai chamem os bombeiros para o irem buscar.

Os bombeiros. Toda a gente sabe que os bombeiros são espectaculares a apanhar balões. Ou não. Mas o que é que, começado por b, poderia apanhar um balão? Um besouro? Muito pequeno. Um beija-flor? Eles não sabem o que é um beija-flor. Ok Alfa, que seja o bombeiro.

"Oh mãe, essa é parva. Os bombeiros não conseguem apanhar balões."
"Pois não meninos, pois não. Deixem lá. Vamos à próxima."

"Letra D!"
O Damião por desporto, joga dados, dominó. E para fazer dieta, são doces e pão de ló.

???

"Escolham outra."

"Letra F!"
O Filipe foi nas férias para a ilha do farol. 

Filipe, férias e farol. Três palavrinhas começadas por f, nenhuma metida a martelo. Boa, Alfa. Esta já não me parece nada mal. Não continuasse com:

Ia lá pescar fanecas para depois fritar ao sol.

Letra H:
O Hélio quis agarrar a hiena no matagal. Levou valente dentada, foi parar ao hospital.

Ponto um: nenhuma criança se lembraria de tentar agarrar uma hiena. Ponto dois: as hienas vivem na savana, não na mata ao virar da esquina. Hi-po-pó-ta-mo não teria sido mais bem escolhido, caro Alfa?

Eu continuo, alfabeto adiante até ao momento em que percebo já ser a única ocupante do automóvel a prestar atenção às canções. 

Letra P:
A Petra põe-se ao piano, parece uma pianista mas, se uma pulga lhe pica, pára de ser uma artista.

Volta bom barqueiro. Estás perdoado. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Castelos de areia



Os meus filhos gostam de fazer castelos de areia e importa salientar que é das poucas actividades em que conseguem empenhar-se juntos por mais de dez minutos sem que se engalfinharem. O Tommy é o homem das pontes, dos muros altos e de outras construções em grande escala. O Ti é o homem dos detalhes conceptuais e dos pormenores decorativos. A Té como elemento feminino do trio é a que menos faz e mais ordens dá.

Ao contrário dos meus filhos eu não gosto de construções na areia. Não que não goste de trabalhos manuais. Dêem-me um quilo de massa de açúcar e eu construo o que me pedirem. Passem-me uma embalagem de plasticina e eu fico entretida durante horas. Areia,não obrigada.

Ao contrário de mim (e para minha grande sorte) o André gosta de fazer castelos de areia. Conhece as técnicas de construção. Sabe o que fazer para garantir que a obra se mantém intacta até ao final do dia. Possui o carisma e o espírito de liderança necessários para assegurar o sucesso de cada empreitada.

Hoje estão a construir uma cidade. O Ti  decretou que é Gaia. Estão neste momento a fazer o Corte Inglês. Acho que tenho tempo para dormir uma sesta. Acordem-me quando estiverem perto do Parque Biológico.


terça-feira, 2 de setembro de 2014

Summer days


Pão com manteiga para o Ti. Check.  Chipicao para a Té. Check. Check nada pois para a minha filha o chipicao não é mais do que um bónus que acompanha uma tattoo surf collection. Uma tattoo e uma sandes de pão de forma para a Té. Check. Bananas para o Tommy. Check. Água. Check. Toalhas. Check. Cremes. Check. Livro. Check. Pás e baldes. Check. 

Prontos? Não. Falta lavar os dentes. Falta passar uma escova nesses cabelos. Té, pára quieta. Queres duas trancinhas? Como a Anna? Seja. Vai ver ao espelho como estás bonita. Pena a franja estar tão comprida. Vieram ganchos? Não. Puxa para o lado, para não te tapar os olhos. Resulta? Não. Vamos andando, eu e a Té. Esperamos por vocês junto ao minimercado.


"Bom dia, tem ganchos para o cabelo? Não? E tesouras?" Sim, é uma opção surpreendente mas preciso de resolver o problema da franja da criança antes que lhe arranje um problema de visão. "Só tem tesouras das unhas?"  Venha uma. Té senta aí na sombrinha para a mãe aparar a franja. Não te mexas que isto não corta nada bem. Olha para mim. Não está mal. Vamos cortar só mais um bocadinho. Pronto, estás perfeita. Ou não, mas podia estar pior. 

Olha, lá vêm eles. Pais, meninos e tralhas. Check, check, check. Calor e céu azul. Check, check. Absolutely ready for another happy summer day.