quinta-feira, 30 de abril de 2015

"Quero uma folga!"



Preparamos-nos para sair de casa. Mochilas, lancheiras e casacos perfilados no hall de entrada. Hoje são apenas a duplicar, uma vez que o Tommy está adoentado. O Ti rosna de indignação. Diz que merece uma folga. Contas suas, os irmãos já faltaram mais dias ao colégio no último mês do que ele desde o início do inverno. Digo-lhe que devia estar contente por não adoecer com tanta facilidade. Enfurece-se. Como posso eu atrever-me a dizer tal disparate? Como pode alguém, no seu perfeito juízo, comparar um duro dia de aulas com um dia passado, em pijama, no sofá, a ver televisão? Mudo de estratégia. Pergunto-lhe se não fica orgulhoso por saber que o seu corpo está cada vez mais resistente a todo o tipo de infecções. Responde que não. Lamenta ter sido operado à garganta. Recorda com nostalgia os tempos em que as suas amígdalas o presenteavam regularmente com períodos de descanso no aconchego do lar. 

Os dias passam. O Tommy recupera. A Té reveza-o. O Ti desespera.

Eis que... subitamente, surge uma tosse. Uma tosse rouca, funda, daquelas que inspiram alguma preocupação.

“Mãe, acho que estou a ficar doente!”
“Não sei rapaz… não tens febre. Mas talvez seja prudente seres auscultado.”

A tão desejada folga parece estar, finalmente, a chegar. Os seus olhinhos brilham de alegria. Mal pode esperar pela consulta.

O veredicto não é o esperado. Não precisa de ficar em casa. Uma colher de Broncoliber durante um par de dias deverá ser o suficiente para resolver o assunto. Está mais furioso do que nunca.

“Não vou tomar isso!”
“E pode-se saber porquê?”
“Não tomo xarope para broncos!”


quarta-feira, 15 de abril de 2015

Mom's on a diet



Mãe, porque é que estamos a parar no supermercado?
Porque eu preciso de ir ao supermercado?...
Mas o pai já foi hoje!
Eu sei que o pai já foi mas eu vou começar amanhã uma dieta e faltam-me algumas coisas que o pai, certamente, não comprou.
Dieta? Para que é que vais fazer dieta?
Para derreter aquilo que as roupas de inverno tapam e as de verão não.
Nós também vamos fazer dieta?
Não, vocês não precisam.
Porque corremos muito, não é?
Sim, não só mas também.
Podemos levar estas bolachinhas de manteiga?
Não precisarem de dieta não significa que possam passar a vida a comer coisas que fazem mal à saúde.
Mas… já não compras destas bolachas em latinha há muito tempo. Vá lá…
Ok, tragam a lata.
E estas, com chocolate?… Para o Tommy. Ele adora…
Só mais essas. Agora vamos aos legumes.
Eu peso os legumes!
Eu é que peso!!
Ninguém pesa. Aqui só a menina da caixa é que pesa.
Então eu ponho no saco!
Eu é que ponho no saco!!

Deixo-os à luta com os brócolos e dirijo-me para as carnes.

Mãe, espera por nós!
Venham!
Precisas destas almôndegas?
Não. Preciso de bifes de peru.
Bifes de peru, bifes de peru… estão aqui!
Agora fiambre.
Tens aqui fiambre, mãe!
Esse não. Quero fiambre de peru.
Fiambre, fiambre… fiambre de peru! Encontrei!
Salsichas. Vejam se encontram salsichas de peru.

Eles procuram. Eu procuro. Não encontramos.
Menina, desculpe, há salsichas de peru? Só em lata, no fim do corredor, diz a menina. Muito bem. Passaremos por lá à saída.

Agora… queijo!

Correm desenfreados para os queijos.

Não digas nada mãe, já sabemos! Queijo de peru!


quinta-feira, 9 de abril de 2015

Há(aargh) finais de tarde assim




Chego cedo a casa. Pela janela aberta da cozinha entra a luz morna do fim de tarde. Vejo as nuvens pinceladas em tons coral e quase me atrevo a sentir um cheirinho a verão. O Ti está no quarto a fazer uma ficha de língua portuguesa. O Tommy prepara-se para começar uma apresentação de powerpoint sobre o George Orwell. A Té, ao contrário do costume, não está a tentar impedir os irmãos de trabalhar e diverte-se sozinha com uma bola, no corredor. 

Sinto uma paz flutuante que inunda a casa e a minha alma. Há finais de tarde assim.

Tenho de pensar no jantar. Abro o frigorífico em busca de uma ideia. Atrás dos sumos e do tupperware da sopa vejo-a a sorrir para mim. Uma tónica Schweppes esquecida a um canto desde que os dias se tornaram frios demais para bebidas tónicas. 

Tenho de pensar no jantar mas primeiro vou preparar um gin tónico. Nada como um gin tónico para celebrar o primeiro final de tarde do ano com cheiro a verão. Gelo, preciso de gelo. O mais provável é não ter gelo. Um bom final de tarde pede um gin tónico tanto quanto um gin tónico pede gelo. Esgravato as gavetas do congelador em busca de uma pedrinha que seja. Pelo caminho tiro uns bifes que ponho a descongelar. Já não sinto os dedos das mãos quando, finalmente, a descubro. Tão antiga, certamente, como a garrafinha de Schweppes. Serve. Um bom final de tarde pede um gin tónico mesmo que não seja o melhor dos gins tónicos. Deixo a pedrinha a arrefecer o copo e vou espreitar os miúdos. A Té já largou a bola e prepara-se para fazer um desenho. 

Volto para a cozinha. É cedo. Talvez tenha tempo de fazer um doce para a sobremesa. Gelatina em camadas. A única que, à data, reúne consenso por estas bandas. Oito camadas. Doze minutos cada uma. Tenho tempo, claro que tenho tempo. Perfilo um arco-íris de pacotes royal no balcão e observo-os enquanto provo o gin tónico. Mesmo com gelo fora de prazo sabe-me pela vida. O céu continua numa dança de cores quentes fazendo brilhar as gelatinas que começo a dissolver em copinhos.

Um grito irrompe o meu sonho de fim de tarde de verão:
“MÃÃEEE!!!!! A TÉ ESTÁ A INRRITAR-ME!!!”

Respiro fundo.
“TÉ! DEIXA O TEU IRMÃO EM PAZ. VEM CÁ.”

Não vem. Coloco a primeira camada de gelatina no congelador, dou um golinho no meu gin tónico e vou apaziguar os ânimos dos mais novos. A Té está a desenhar bandeiras da Alemanha. O Ti não compreende a sua fixação com os germânicos e tenta convencê-la a desenhar a bandeira de Portugal. 
"A Alemanha é melhor!"
"Não é nada!! Tu és portuguesa tens de gostar mais de Portugal."
"Mas eu gosto mais da Alemanha. A Alemanha ganha sempre no futebol."
"Isso é mentira."
"Ganhou o mundial. Pimba, pimba..."

Proponho a ida de ambos para o banho na esperança que a água tépida lhes dissolva a quezília. Começo a encher a banheira.

"MÃE! PODES VIR VER SE A APRESENTAÇÃO ESTÁ A FICAR BEM?"

Vou espreitar. O que está feito parece bem mas é ainda muito pouco. 
"Isso não é o texto da wikipédia?"
"É, mas na parte da biografia o professor autoriza tiremos a informação da wikipédia... e este é o slide da biografia."
"Chama-me quando passares a um slide que não seja um copy-paste, ok?"

O despertador avisa-me que está na hora de colocar mais uma camada de gelatina a arrefecer. A Té já corre nua pela casa. 

"Té, já para a banheira! TIAAAGOOO, ANDA PARA O BANHO!"

Preparo o caldo de galinha para o arroz. 

"MÃÃÃEEE!!! PODES VIR FAZER ESPUMA?"

Sempre a mesma coisa. Se faço espuma, não queriam banho de espuma. Se não faço espuma, lembram-se de que gostam de banho de espuma.

"AGORA JÁ NÃO DÁ!"

Terceira camada de gelatina. 

"MÃÃÃEEEE!! A TÉ ESTÁ A TENTAR FAZER ESPUMA!"

Lavo a alface.

"MÃÃÃEEEE!! A TÉ ESTÁ A ATIRAR ÁGUA PARA O CHÃO!"

Olho o céu lá fora em busca da paz que parece escoar-se pela janela a cada grito dos miúdos. A pedra de gelo já derreteu. Dou mais um golinho. Ainda está fresco. Confirmo, no temporizador do telefone, se tenho tempo de ir lavar-lhes o cabelo antes da próxima camada. Dois minutos. É pouco. Espero pela próxima.

"MÃMÃÃÃÃ!! O TIAGO BATEU-ME!!"
"NÃO BATI NADA!! SÓ A EMPURREI!!" 
"MÃEEEE!!!! O TIAGO ESTÁ A DIZER QUE EU SOU MÁ!!!"

Grito da cozinha:
"E ÉS BOA, POR ACASO?"

Resposta do lado de lá:
"ÀS VEZES!"

Quarta camada de gelatina. Dou um gole rápido no gin tónico que já não me sabe tão bem como os primeiros, tempero os bifes e vou lavar as cabeças dos miúdos. A Alemanha continua a ser o centro da conversa. Agora discutem se a nossa ida à Alemanha vai ser de avião ou de auto-caravana como se tivessem autonomia para não só decidir os destinos de férias em família como também para escolher o meio de transporte.

"Auto-caravana é muito melhor!"
"Avião é mais rápido!"
"Mas pode cair..."  
"AVIÃO!"
"AUTO-CARAVANA!"
"A-V-I-Ã-O!!!!"
"A-U-T-O-C-A-R-A-V-A-N-A!!!"

O temporizador já toca de novo. Corro à cozinha. Quinta camada. 

"MÃE!! PODES VIR VER ESTE SLIDE?"
"JÁ AÍ PASSO."
"MAAAMÃÃÃÃ!!! O TIAGO PÔS CHAMPÔ NO MEU OLHOOOO!!!
"MÃÃÃEEE!!! A TÉ ACERTOU-ME COM O GEL DE BANHO!!!

Corro à sala para espreitar o powerpoint do Tommy. Volto à cozinha. Ponho o arroz no tacho. Corro à casa de banho e arranco, a custo, os outros dois da banheira. 

"MÃÃÃEEE!!! OS PIJAMAS?"

Bolas, esqueci-me dos pijamas. Corro aos quartos. Pego nos pijamas de cada um que atiro para dentro da casa de banho. Regresso quando o arroz já está a estalar. O temporizador avisa que está na altura da sexta camada. 

"MÃE, PODES VIR AQUI?"
"MÃÃÃEEE, OLHA A TÉ!!!"
"MAMÃÃÃ, OLHA O TIAAAAGOOO!!!"

"JÁ VOU!! TENHO SÓ DE TRATAR DA GELATINA E DEITAR O CALDO NO ARROZ E JÁ VOU!!"

"MÃÃÃÃEEEE!!!"

Abstraio-me da gritaria por uns breves segundos. Olho, mais uma vez, pela janela. Os tons coral do céu já se foram. 
Estendo a mão para o meu gin tónico para um último gole na derradeira tentativa de resgatar o cheirinho a verão que parece diluir-se no cair da noite. Tentativa que poderia ter tido algum sucesso se não tivesse, por engano, agarrado o copo com o caldo de galinha em vez do copo de gin. 

"AAAARGH!!! JÁ VOU MENINOS, JÁ VOU! TENHO SÓ DE ESCOVAR OS DENTES E JÁ VOU!"