terça-feira, 4 de março de 2014

Falcão



O Falcão entrou nas nossas vidas algures no início de 2011. Chegou com olhinhos doces, orelhas baixas e as patinhas macias de cão bebé cheias de lama.

Manda a prudência que quando se vive numa casa onde há três crianças, um cão e uma gata com mau feitio não se abra a porta a um bichinho perdido. A prudência passou por mim a correr muito. O cão entrou na condição de ficar apenas um dia ou dois até conseguirmos encontrar o dono. Um ou dois dias em que a Glorinha (que o atacou assim que o viu) ficaria restringida à lavandaria e à varanda e o paz de alma do Beckam iria para casa dos avós. Um ou dois dias foram suficientes para o cão passar a ter nome (Falcão, que era a estrela da época do Fcp), cama, taças de água e comida, brinquedos, coleira e uma mega infecção na pata resultado de uma mordidela da Glória. Um ou dois dias foram suficientes para concluirmos que não íamos conseguir descobrir o paradeiro do dono. Um ou dois dias foram suficientes para cedermos aos pedidos dos miúdos e ficarmos com o Falcão. Um ou dois dias foram suficientes para embarcarmos naquelas que foram, sem grande dúvida, as semanas mais caóticas das nossas vidas.

O nosso ritual matinal (que já não era simples, diga-se) passou a incluir tarefas como passar o chão da cozinha e do corredor com a esfregona, dar antibiótico e fazer curativo à pata do bicho, resgatar bonecos sem mãos, sem pernas ou sem cabeça, procurar objectos desaparecidos (óculos, telefones, comandos), encontrar objectos desaparecidos feitos em pedaços, contabilizar pernas de mesas e cadeiras roídas. Ao ritmo de uma em cada três manhãs, a Glória (em formato ouriço com todos os pelos do seu corpo hirtos de fúria) arranjava forma de se esgueirar da lavandaria obrigando a um recolher obrigatório das crianças numa das divisões da casa até que a conseguíssemos separar do Falcão. Quando esta fuga ocorria antes da operação esfregona o cenário era digno de uma obra do Kusturica.

Passada a tempestade, o malvado do Falcão deitava-se de patas para o ar, ostentando a sua deliciosa barriga de cachorro, e sorria-nos com os seus olhos cor de mel mostrando que valia o sacrifício.

Certo dia, numa visita a casa dos avós, sumiu-se. Houve quem recomendasse "Aproveitem a oportunidade para voltarem a ter paz. Deixem-no ir à vida dele". Não o fizemos, naturalmente. Após dias de buscas e distribuição de cartazes fomos encontrá-lo bem disposto, com uma nova família, com a mesma coleira e um novo nome. Regressou, para grande alegria das crianças, e o caos regressou com ele. Até ao dia do incidente, que passo a descrever:

<O dia foi dos maus. Duas reuniões, das duras, na capital do império... não vejo hora de me enfiar na cama. Estou na cozinha, a aquecer os leites dos miúdos, que já estão de banho tomado e pijama vestido. O André ainda não veio da fábrica. A Teresinha, condutora eximia do seu andarilho, persegue os irmãos que perseguem o Falcão, que por sua vez persegue uma bola de ténis. Um grito eleva-se acima do abundante ruído ambiente e chega-me aos ouvidos:

"MÃÃÃÃÃÃÃEEEEEE! ESFREGONA! O FALCÃO FEZ XIXI!"

"Já vai, já vai! Segurem a Té antes que passe por cima!"

Estendo ao Tommy o caderno de Emprego do Expresso para ir cobrindo o 'lago'. Corro à lavandaria em busca do balde e da esfregona. Abro, com jeitinho, a porta, enquanto que, com o pé, tento evitar a passagem da Glória. Estou prestes a concluir com sucesso a minha operação quando ouço:

"Mãããeeeeee! O Falcão pisou o xixi e está a saltar para cima de mim!!!"

"TUDO QUIETO! VOU A CAMINHO!!!"

Regresso, de esfregona em punho. Sou ultrapassada por uma bola de pêlo amarela que tem tanta vontade de desfazer o Falcão como eu. Não há tempo, nem ânimo, para a apanhar. Deixo-a fazer o que lhe compete enquanto esfrego o chão e aviso os miúdos que têm de ir para o banho de novo. Eis que:

"Mããããeeeee! O Falcão fez cócó!!!"

Elevo a cabeça e vejo um cócó, enorme, em pirâmide, a fumegar mesmo à entrada da sala. Não... isto não me está a acontecer... olho em volta... o Tommy segura o Falcão que, de orelhas arebitadas, abana alegremente a cauda como se não tivesse nada a ver com isto... o Ti está encostado à parede, petrificado... a Glória parece ter percebido o nível de raiva que transpiro e está, inacreditavelmente, quieta no cimo de uma estante... instala-se o silêncio... a Teresa...onde está a Teresa?

"Meninos, a vossa irmã?"

"Acho que está na sala, mãe..."

O barulho do andarilho aproxima-se, anunciando que a Té não só está na sala como se dirige para nós... e para o excremento fumegante...

Tenho esta imagem viva na memória, hoje e para sempre: a Té a dobrar a esquina a alta velocidade com o seu rasgado sorriso de dois dentes... as rodas do andarilho a dispararem cócó em todas as direcções, a Glória estática no cimo da estante, qual gato de louça, com os olhos amarelos a brilhar perante aquela que era, claramente, a derradeira asneira do Falcão.>

Assim foi. No dia seguinte levei o bicho, a cama, as taças e os brinquedos a casa da família que o tinha acolhido aquando da sua fuga e que tinha mostrado abertura para ficar com ele. Tanto quanto sei foi feliz durante uns meses até ter fugido sem deixar rasto. Aposto que continua por aí a entrar e sair da vida de famílias como a nossa, com a missão de fazer ver que a vida que temos não é tão complicada quanto às vezes parece. 

Nos dias em que me sinto a perder a paciência lembro-me do 'momento Falcão' e digo para mim: "Já foi pior Joana, já foi pior."


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