O final do dia chega sem uma brisa que me refresque o corpo e (principalmente) a alma. Olho o asfalto que parece fumegar sob os carros parados
à minha frente e anseio pelo momento em que possa enfiar-me debaixo do
chuveiro. Toca o telemóvel.
“Joana! Não há leite!...”
Por estas bandas não haver leite é quase tão mau como não haver água
ou luz. À excepção do pai, que só gosta de iogurte, ninguém vive sem leite de manhã, à tarde e à noite.
Em doses industriais. Simples, com chocolate, com café, com cereais, batido com banana ou com
morangos. Quente, frio, morno. Esteja gente em casa e há sempre um leitinho a sair.
Respiro fundo e digo o que tem de ser dito:
“Ok, eu passo no Continente (assim que o trânsito me permita…)”
Carrego no botãozinho que aumenta a velocidade do ar-condicionado
até o símbolo da ventoinha estar completamente preenchido. Mesmo em modo túnel
de vento continuo a morrer de calor. Um olhar mais atento ao painel de controlo
permite-me constatar só está ligada a ventilação. Insulto-me e carrego no botão
que diz A/C. Uma frente polar invade o carro. Deixo-me arrefecer até chegar ao
supermercado, momento em que já me começa a doer a garganta. Dou duas ou três
voltas em busca de um lugar à sombra. Não há. Estaciono bem longe da entrada,
ao sol.
Vá que hoje em dia ir comprar leite para o meu povo já só exige esforço físico. Tempos houve em que era uma tarefa com requisitos para os quais poucos estavam habilitados. Ele era leite crescimento 1 a 3 com sabor a bolacha para a Té (servido
morno e misturado em partes iguais com leite crescimento sem sabor), leite
crescimento 3+ com sabor a cereais para o Ti (servido quase frio e misturado
numa proporção de um para três com leite normal), leite meio-gordo para o Tommy (com Cola Cao ou Ovomaltine), leite magro para mim, leite gordo para sobremesas e
molhos. Toda uma panóplia de tetra paks que a Glória fazia questão de furar
cada vez que nos esquecíamos da porta da despensa aberta. Tempos em que organizar o frigorífico era quase tão difícil como organizar a mala do carro para uma semana de férias. Livrei-me desta esquizofrenia láctea no momento em que decidi passar a comprar um único tipo de leite. Foi bem mais simples do que esperava. Os mais novos fizeram um desmame gradual dos leites açucarados e em menos de uma semana estavam a beber leitinho simples sem queixas. Eu deixei-me de leite magro. Quanto aos cremes, bolos e molhos, passaram a ser feitos com leite meio gordo sem diferença de maior no resultado.
Pego num carrinho, atesto-o de pacotes de litro e meio, pago e regresso. Atravesso o tórrido parque de estacionamento quando telemóvel volta a tocar. Detenho-me e procuro-o nos confins da minha carteira. Não aparece. Procuro melhor. Encontro-o. Já parou de tocar. Olho para a frente e vejo o meu carrinho com uma tonelada de leite meio-gordo a descer em aceleração o parque que tem, definitivamente, uma inclinação muito superior à recomendada. Corro atrás. Agarro-o quando está prestes a desfazer a traseira de um carro estacionado. Suspiro. Estou na ponta oposta do parque. Arrasto (com esforço) o carrinho até ao meu lugar ao sol. Ainda me tenta fugir enquanto o descarrego mas já não me apanha de surpresa. Encho a mala. Agora é só chegar a casa e meter a carga no elevador. O papá e os meninos que a levem para dentro. Eu vou para o chuveiro.
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