Final de tarde. A poucos quilómetros de casa vislumbro uma operação
stop daquelas que trazem uma carrinha grande cheia de polícias pequeninos, em início
de carreira, ávidos de toda e qualquer pequena inconformidade que possa ser
objecto de multa.
Nunca sei muito bem onde estão os documentos do carro e estou atrasadíssima
pelo que peço a Deus que não me mandem parar. Deus tem, certamente, mais com
que se ocupar. O primeiro polícia pequenino da fila dá-me ordem para encostar.
“Boa tarde. Documentos da viatura e seguro, por favor.”
Abro o porta-luvas e encontro de imediato a folha verde do seguro.
Suspiro de alívio. Um já está. O livrete também aparece após uma busca rápida
por entre os cinco mil compartimentozinhos de arrumação do carro.
“Muito bem. Os seus documentos por favor.”
Esta é a parte fácil. Sorrio confiante e mergulho a cabeça no meu
saco em busca da bolsinha onde costumo guardar os documentos. Encontro-a após despejar
no banco três chupetas, duas garrafas de água, quatro isqueiros, um agrafador(?),
dois pares de óculos escuros, uma barbie, uma babete e um sem número de talões
de compras (mental note: arrumar o saco quando chegar a casa…).
“Senhor agente, aqui tem o meu cartão do cidadão e…”
Bolas, não vejo a carta…volto a mergulhar a cabeça no saco. Há
outra bolsinha onde poderá estar… não está.
O polícia sorri, com uma malvadez indisfarçável.
“Falta a carta de condução.”
Pois falta, falta… onde raio estará? Eis que me vem à memória a
imagem dos miúdos, numa viagem de carro, agarrados ao papel cor-de-rosa:
“Olha a mãe aqui tão diferente!”
“Deixa ver! Ah, ah, ah!”
“Meninos, cuidado, ainda me rasgam a carta. Olhem que é válida até
2040!”
“Estás um bocado feia na fotografia, mãe…”
“O que é este desenho na parte de trás?”
“Um círculo de Mohr. Esse desenho tem séculos. As cartas davam
jeito para copiar nos exames.”
“Um círculo de quê? Copiar onde?”
“Esqueçam. Passem mas é para aqui a carta antes que fique feita em
pedaços.”
“Espera, deixa ver melhor…”
Não sei se sobreviveu intacta. Sei agora, que, pelo menos para
mim, não voltou. Desabafo:
“Não tenho a carta.”
O polícia pequenino dirige-se ao polícia grande que me vem
informar que vou ser autuada. Aproveita para pedir para ver o triângulo e o
colete.
Mais uma missão. Mergulho na mala. Depois de ter tirado quatro
bolas, um guarda-chuva, um guarda-sol, um pára-vento, três casacos, uma mochila
e uma caixa de sapatos, diz-me:
“Deixe estar, minha senhora. O carro é novo, tem, com certeza,
triângulo. Sugiro-lhe que peça ao seu marido para lhe indicar onde está. Sabe
que há coisas que só são úteis se as conseguirmos encontrar quando precisamos
delas.”
Agradeço a lição de moral e arranco. À parte o dinheiro da multa
sinto algum alívio por me ver livre daquela carta que ameaçava lembrar-me
durante mais três décadas as roupas e cabelo ridículo que usava em 94. Além
disso, a morada estava desactualizada. Deus não dorme.